Depois de uma conversa
boa daquelas, em cima da minha cama, eu e Emanuelle resolvemos da um tempo
neste mundo e viajar. Para onde? Buenos Aires? Vamos? “Já estive lá e é muito
legal. Na época, junto com Miriam, nos divertimos muito. Foi tudo muito
incrível e quero te mostrar os lugares que visitei.”
Então vamos! Viagem
decidida, marcamos a data, compramos passagens. Trabalho concluído, famílias
comunicadas, hotel agendado, malas arrumadas. Dr. Google sabe tudo. Pesquisamos
clima, lugares a serem visitados, transporte, câmbio.
Nos lançamos em uma
aventura com precedentes, sorrisão no rosto e gargalhadas de plantão na bolsa
para serem sacadas sem discriminação de 22 à 29 de outubro.
Buenos Aires é
cinzenta. Um estilo antigo onde poderia ser rodado um filme vampiresco com
atores desconhecidos, ou não. Tem uma aura, uma bruma escondida que zomba de
nós. Parece uma senhora bruxa, com uma capa muito longa que esconde o rosto em
um capuz.
Logo que chegamos
tentamos trocas nossos reais por pesos e descobrimos que os as filiais dos bancos
brasileiros não estavam funcionando. Fomos à casa de câmbio e comecei a
cultivar uma decepção com a cidade que já começava a se mostrar estranha para
mim.
Enquanto caminhávamos
na rua paralela à 9 de Julio vários homens nos cercaram gritando ofertas de
almoço, janta, câmbio e compras suspeitas. Melhor pegar um mapa e decidir o quê
visitar.
La Recoleta – O cemitério onde Eva
Perón é visitada todos os dias por dezenas de pessoas teve um novo sentido.
Manu ficou encantada com as inúmeras estátuas de anjos que se espalham em todas
as direções. Resultado: fotos de todos os lugares em todos os ângulos! O clima
estava bom, o céu cheio de nuvens e a luz do sol parecia estar atrás de uma
cortina. Muito sinistro! Ficamos horas fotografando gatos que posavam para nós.
Sim! Gatos de verdade. Amarelos, cinza, rajados, velhos, estropiados, brancos,
pretos, preguiçosos, desconfiados. Mas nenhum deles parecia esfomeado. Por que
será?
E os anjos que nos
olhavam com seus olhos cegos nos faziam silenciar e pensar que, afinal,
cemitérios também tem beleza. E mistérios! Os leões, as gárgulas, aquelas asas
quebradas com flechas apontando para o alto. No limo entranhado nos moldes, tão
antigos, tão abandonados, que davam às formas sombras espectrais, iam captando
nossa atenção, colocando nossos olhares por trás das lentes das câmeras,
enveredando em um universo extraordinário que foge ao nosso entendimento.
Nós duas nos
encontramos perdidas entre túmulos de pessoas desconhecidas e encontramos uma
parte nossa que estava perdida. E quando nos ajoelhamos dentro da Igreja de
Pilar, aos pés da imagem de Jesus, o Cristo, serenamos. Ele é nosso irmão. E
uma magia muito louca nos abraçou. E rimos diante da revolta absurda de um
mundo tão injusto. E, é claro, fizemos aquela mandinga antiga de fazer três
pedidos sempre que se entra em uma igreja pela primeira vez.
Temaiken – Este parque foi um
erro que deu certo. Na verdade queríamos ir para Lujan. Resolvemos visitar os
leões e os tigres e saímos empolgadas. Pegamos o metrô, falamos nosso portunhol
de todo dia e conseguimos comprar as passagens para o parque. Visitamos todos
os buraquinhos onde os bichos estavam e tiramos fotos. Muitas fotos! E só na
saída descobrimos que Temaiken não tinha leões. Eles estavam a 30 km da cidade!
Depois desta decepção
engraçada ainda descobrimos que os turistas são tratados com um diferencial
monetário. Tudo é muito mais caro. Uma garrafa de água de 200ml custa 30 pesos,
o equivalente a 15 reais. Fiquei com vergonha e pensei, será que no Brasil isso
também acontece? Vemos um “gringo” e resolvemos ganhar em um dia o que ganhamos
em um mês? Feio. E muito pobre esse comportamento. A corrupção tem raízes
profundas na construção psicológica de um povo. E parece que não vamos nos
livrar disso tão cedo.
Pelo menos a fotos
ficaram lindas! Arigatô, Nikon-san!
Zoológico de Lujan – É uma fazenda-parque
onde leões, tigres e gatinhos de grande porte são criados mamando em cadelas e
brincando com gatinhos de verdade (???). Assim eles são tecnicamente
domesticados e convivem com os bichos homem/mulher sem querer cravar os dentes
em suas jugulares.
O lugar fede.
Desculpem-me, cheira muito mal. Imaginem uma área aberta onde patos, marrecos,
gansos e afins ficam soltos o tempo todo, passeando entre as pessoas, atacando
suas bolsas – sim! Eles nos atacam procurando comida! – entre gatos, cães, passarinhos,
pombas e... (usem sua imaginação olfativa!).
Mas tudo é esquecido
quando se tem a oportunidade de tocar em um animal que, geralmente, só vemos na
televisão, a uma distância muito segura. O cuidado ao entrar nas jaulas desses
animais é extremo. Embora tivemos a nítida impressão que todos eles estavam
dopados, foi muito emocionante poder posar ao lado de um leão de 200 quilos –
com as mãos nele!
Manu deitou no chão,
com a cabeça na barriga de um tigre, toda feliz. Na verdade eram tres tigres –
completamente apagados! Quando eu passei a mão na cabeça de um deles os
treinadores gritaram: “Na cabeça, não!” – tarde demais! O animal sequer piscou.
Manu bateu a foto, rápida! Como não passar a mãos na cabeça de um bichano?
Gente doida!
Na saída, no final da
tarde, novo aborrecimento. É preciso ter muito cuidado com as informações que
se recebe aqui. Cada um tem um livro de regras diferente e ninguém conhece a
alheia. Na vinda pagamos dez pesos cada passagem. Perguntei três vezes ao
motorista/cobrador/informante se poderíamos voltar com o mesmo transporte
pagando a mesma quantia. Ele disse: “Sí.
Sí. Usted tiene que pagar con diez monedas.” Felizes, passamos o dia no
zoológico passeando de camelo, passando a mãos nas trombas dos elefantes,
driblando os patos (e afins), fotografando lhamas e focas, e colocando filhotes
de leões no colo.
E, surpresa! Depois de
esperar meia hora pelo ônibus, eis que o motorista não nos deixou entrar porque
a passagem não era dez pesos mas TRINTA pesos! Madre de Dios Santo! Discuti com o motorista, nem me lembro o que
disse. Só sei que, furiosa, encontrei os olhos da Emanulle, entre espantados e
divertidos. Ela me disse: Gente! Eu não sabia que você sabia falar espanhol tão
bem!”. Foi minha vez de ficar espantada. Eu? Falando espanhol? Bem? Ri. Quando
nos aventuramos em terras desconhecidas é preciso levar na bagagem muita
paciência e deixar a caixa de expectativas em casa. Assim não nos decepcionamos
e podemos resolver os problemas com mais racionalidade. Porque no auge da raiva
podemos fazer coisas inusitadas até falar bem espanhol!
Feira de San Telmo – aqui é outro mundo!
Uma espécie de fenda intra temporal onde tudo é nada e nada é tudo. São coisinhas
lindas e feias. Para todos os gostos e desgostos. Você encontra o desnecessário
e necessariamente se encontra inundada por inutilidades que você precisa ter.
Vários universos de possibilidades. Humanas e materiais.
Onde uma estátua humana
de um homem todo branco pega na sua mão com tanta gentileza, te olha no fundo
dos olhos e beija seus dedos suavemente. Te dá o braço e te permite
acompanhá-lo em uma caminhada imaginária, capturada na fotografia fria. E te
agradece, tendo você dado a moeda ou não, com um sorriso enigmático que diz:
“você jamais vai me esquecer!”
Teatro Colón – que maravilha. A
apresentação que assistimos de uma solista tocando o violoncelo foi
emocionante. A arquitetura, a história, o som. Como se estivéssemos
hipnotizadas, deixamos que as notas tomassem conta da nossa corrente sanguínea
e bombeassem nossos corações no ritmo do arco. Definitivamente ali, nos
sentimos outras. E, melhor, como se pudéssemos ser quem quiséssemos. Tanto, que
enquanto andávamos na calçada do Teatro dois casais passaram, nos olharam e
disseram: “Españolas”.
São momentos como esses
que colocam em xeque nossos limites. Não há fronteira para nossos sonhos. Não
há beirada de precipício que nos impeça a caminhada. Basta saber de que maneira
você alçará voo.
Show de Tango –
Assistir um casal dançando tango mexe com todas as células do seu corpo. Dá
vontade de levantar, ser rodopiada, agarrada, olhada, despida, amada. Depois de
um jantar regado à gentilezas concedidas à damas, assistimos os casais
executarem aqueles passos intrincados, ensaiados, com tanta naturalidade que
tenho a impressão que eles já faziam isso no útero da mãe, enquanto ficavam
ali, esperando a hora de nascer, sem nada para fazer.
É um deleite visual e
sonoro e queremos que seja repetido em câmera lenta, para ficar gravado no
tempo suspenso, infinito. Mas acaba, infelizmente. Mas quando olho as fotos,
sou buscada pelo momento passado e posso ver nos olhos do dançarino a malícia
sedutora com que olha sua dama, com a mão na sua cintura, inclina seu corpo
para trás e deixa pairando no ar o beijo que não acontece, a milímetros da sua
boca. E ela, lânguida, suspira e se deixa trazer de volta para mais um giro.
A cidade – andamos
muito, compramos lembranças, futucamos lojas, e tentamos fazer um lanche o que
se revelou uma grande frustração. Cansadas de tanto andar, com fome e doidas
por um banho, resolvemos comer primeiro e depois voltar para o hotel. Entramos
na fila no McDonald’s e esperamos. Chegou nossa vez, fizemos o pedido. Na hora
de pagar, a confusão! Aquela não era a fila para pagar com cartão de crédito.
Discuti com a funcionária porque eu estava vendo a máquina ao lado dela. Ela me
mandou para o outro caixa onde a fila dava a volta no quarteirão. Hilário.
Quarteirão com queijo foi o meu pedido. Iria ficar sem o queijo pelo jeito. Eu
sei que desistimos da compra e rumamos para o Burger King. Quando entramos na
loja nos olhamos com a mesma pergunta no olhar: “Por que aqui está vazio?”
Continuamos a rir, sim porque na saída do McDonald’s, frustradas e mal
humoradas, ainda conseguimos fazer piada com a atendente numa mistura de
significados entre “tarjeta”, “careta”, e outras palavrinhas sórdidas, nas duas
línguas, que vão acabar em rimas que todas conhecemos.
Fomos bem atendidas.
Pagamos com cartão de crédito. Jantamos. Voltamos para o hotel, tomamos banho e
nos atiramos na cama para ler – acreditem – Cinquenta tons de Cinza. E
continuamos a rir muito com as personagens e seus conflitos sexuais
psicológicos. Ah, la vida es mui bela!
Caminhando pela 9 de
Julio fui atacada por um típico bandido pé de chinelo que tentou arrancar um
cordão do meus pescoço. Ouro falso. Mas o susto foi dele. Agarrei o braço da
criatura e não o larguei. Ele arregalou os olhos que estavam exatamente na
linha dos meus, e tentou puxar o braço. Segurei firme. Como não luto nada, não
tenho reflexos apurados desenvolvidos pelas artes marciais nem meu corpo é
condicionado para reagir neste sentido, fui pega de surpresa e fiquei suspensa
entre e o choque de ser violada e o não saber o que estava acontecendo. Em
fração de segundos entendi. E ele se apavorou. Conseguiu se soltar de saiu
correndo, cambaleando. Atropelou um conterrâneo que vinha na direção contrária
e caiu no chão. Eu, Manu e mais ou menos umas trinta pessoas na rua ficamos
olhando o pobre-diabo-coitado se afastando, frustrado e com medo.
Sua tentativa de
assalto à mão desarmada não funcionou comigo. Enquanto ele se afastava eu ainda
consegui ouvir pessoas xingando, gritando, pedindo por Deus, perplexas! Eu
fiquei parada, olhando-o se afastar, com vontade de ir atrás dele e arrancar
aqueles olhinhos pretinhos daquela carinha inexpressiva dele.
Depois ouvimos relatos
de brasileiros e outros turistas que passaram pelo mesmo problema. Com a mesma
tática. No outro dia, passando pela mesma calçada eu o vi, sentado ao pé de uma
estátua, observando as pessoas passarem. Eu olhei para ele e o vi levantar-se e
seguir para a entrada do metrô. Me reconheceu.
Em nenhum lugar do
mundo passei por uma experiência assim. As marcas da mão esquerda dele ficaram
no meu colo, onde ele tentou arrancar o cordão. Eu entendo quando as mulheres
são agredidas e correm para tomar um banho. Foi o que eu fiz. A água é o
bálsamo que lava aquela energia negativa que invadiu o nosso espaço sagrado e
violou o nosso corpo. Queremos apagar as marcas, o toque, o suor, a sujeira que
entrou sem ser convidada.
Mas a vida segue seu
curso e tudo faz parte de um grande equilíbrio. A beleza pode ser encontrada em
qualquer lugar, basta saber olhar. A Casa Rosada, pombos voando em todos os
lugares; a Floralis Generica e seus esquilos. Árvores imensas, sozinhas,
sombreando uma enorme praça. Estátuas pichadas, abandonadas, representando
tantas coisas que ninguém se interessa mais. Prédios antigos, belos gigantes
arquitetônicos, espremidos entre o metrô e o vai e vem das pessoas que sequer
olham para cima.
Passamos sete dias
diferentes, experimentamos humores, lugares, roupas. Compartilhamos dores,
risadas e comemos bem. Gastamos dinheiro, compramos qualidade de vida. Despimos
alguns conceitos, nos vestimos com felicidade. Achamos a cura para doenças
antigas e abandonamos fórmulas ineficazes.
Viajar é sempre
descobrir caminhos internos.
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