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Trabalhamos embarcadas, offshore, dentro d’água, como queiram. As palavras para explicar essa maneira de ganhar a vida, ou ganhar o sagrado dinheiro para viver a vida, tem muitos nomes. Mas, o importante é o que se ganha na convivência. Neste mundo muito diferente, temos o privilégio da intimidade quando descobrimos a beleza no interior dos seres mais incríveis. Verdadeiros presentes em palavras pois é o que podemos aqui compartilhar. Pérolas que não vão adornar o corpo mas com certeza vão fazer crescer o valor da alma de cada uma de nós. Se nem tudo que se mostra é belo, não importa. Se percebermos o equilíbrio, vai ficar tudo bem!

26 julho, 2014

Uma Estorinha Sobre Leitura


Eu tinha mais ou menos uns 10 anos de idade quando estudei em uma escola pública no interior do Rio de Janeiro, Região dos Lagos. Lembro de uma escola sem atrativos, com um espaço enorme que era usado como campo de futebol na hora do recreio. Lá todos os alunos se encontravam para colocar as fofocas em dia, paquerar, sujar a roupa no pó e ainda fingir que ali existia um gramado. Crianças e adolescentes tem uma maneira muito natural de ignorar o negativo e aproveitar o que a vida dá. Simples!
As aulas de ciências eram dadas por um “professor” que na verdade era um médico ortopedista (soube disso bem mais tarde, nem sabia que existia esse nome!). Ele trabalhava no hospital público da cidade, morava noutra cidade e fazia um “bico” na escola. Homem grande, voz poderosa, muito agitado. Ficava indo e vindo pela sala, passeando entre as carteiras, olhando para todos com olhos de águia. Não perdia nada, não nos deixava falar. E mesmo assim, ficávamos com a atenção totalmente voltada para ele. Medo? Curiosidade? Vai saber! Ele gostava de dizer muitos "eus" e se gabava de ser muito bom em tudo que fazia! Naquele dia, resolveu fazer uma “leitura coletiva” e foi aí que eu percebi que ele iria me VER, ali, no fundo da sala, onde eu pensei que estivesse invisível!
Sim, invisível! Sendo a mais nova da turma eu não tinha colegas-amiguinhos que sabiam dos meus segredos (ainda estou procurando algum), compartilhavam meu material e dividiam o lanche. Não! Totalmente isolada e tímida eu comecei a entrar em contato com meu mundo solitário muito cedo. Já fazia coleção de gibis, lia o que aparecia na minha frente, observava tudo, escutava e analisava ainda mais.
Quando o professor gigante explicou como seria o exercício entrei em pânico. Minha respiração desapareceu! Oxigênio limitado e adrenalina em quantidade. Tô perdida! Enquanto ele regia a leitura sobre algo que não tenho mais a mínima ideia do que era, passando de um para o outro, conforme os parágrafos eram eliminados, eu contava todos, desesperada, rezando para que não sobrasse nenhum quando chegasse a minha vez.
Vã esperança – ele simplesmente pulou para a minha fila e disse: “Você aí, na última cadeira!” – eu fiz de conta que não era comigo, não tirei os olhos do livro. Alguém, para me ajudar (estou tentando lembrar o nome da criatura para fazer um feitiço, ainda!), disse: “Elaine, professor!”. Levantei a cabeça e olhei em volta. Sabe aquela sensação que você tem quando o mundo para e você vira o centro, como se uma catástrofe fosse acontecer e você está ali, totalmente impotente, à mercê do tudo? Pois então – os vinte ou mais colegas, todos olhando para mim, inclusive “o professor”, com um sorrisinho sarcástico, na boca. Eu fiquei olhando, sem respirar. Esperando. “Elaine, pode ler o próximo parágrafo!”
Foi um dos momentos em que eu morri. Sim, porque se você for pensar na sua vida pregressa, vai ver que já morreu várias vezes. Olhei para o livro, encontrei o parágrafo e fiz um esforço enorme para respirar. Ouvi novamente “o professor”: “Vamos, pode começar!”
Eu comecei a ler, provavelmente sem voz, sem ar, sem nem estar ali. Meu espírito poderia ter sido abduzido para outro mundo e eu nem teria percebido, aliás, era exatamente o que eu gostaria que tivesse acontecido. Que nada! Antes que eu tivesse terminado de ler o bendito parágrafo, “o professor” disse: “Chega!” – Levei um susto. Levantei os olhos e fixei meus olhos no umbigo dele. Não iria conseguir olhar para seu rosto, provavelmente porque já tinha imaginado um monstro com olhos vermelhos, cabelos espetados e uma boca cheia de dentes saltando para fora. É, minha imaginação era muito, muitíssimo criativa! Ele continuou: “Você lê muito mal. Nunca vi ninguém ler tão mal assim!”. Depois ele falou mais algumas coisas que eu já não ouvia mais. Os olhos continuavam em cima de mim, julgando, debochando, com pena. Me encolhi. Me recolhi ainda mais. Estava ausente daquele mundo. Morri.
A partir daquele dia continuei lendo meus gibis com uma pequena diferença. Me trancava no quarto, no banheiro, no fundo do quintal e lia em voz alta. Lia muito. Lia até ficar rouca. E ria... ria demais! Comecei a perceber que a minha voz fazia tons diferentes, sons distintos, oitavas altas e baixas e, para cada personagem, uma personalidade acústica distinta. Ah, meu mundo estava mais rico! Comecei a falar sozinha e fiquei mais interessante, pelo menos, para mim mesma.
O tempo passou, a timidez deu lugar a outras coisas (não vou falar disso aqui agora!), viajei, mudei, morri mais algumas vezes, até que um dia fui parar na Escola Normal de Brasília, em uma turma com 52 meninas. Que fauna!
Logo na segunda semana, nossa Professora de Técnicas de Literatura (me corrijam, meninas, se errei o nome da matéria) nos fez ler, dividindo o texto aleatoriamente entre nós, João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina. Eu acompanhava o texto, apaixonada pelas rimas, mergulhada em cada palavra. Percebi a preocupação da minha colega-amiga Baiana (tinha conseguido uma!), pois ela sabia da minha história. E quando a Professora falou meu nome, para que eu desse continuidade à leitura, senti o olhar da minha amiga no topo da minha cabeça (ela estava sentada à minha frente). E foi ali, no meio da Morte e Vida Severina que eu-menina Morri e Vivi mais uma vez. Eu li, encontrei o oxigênio que eu precisava nas letras, no sentimento, na maestria daquele autor. E continuei lendo... percorri todas as linhas, andei por todas as rimas, caminhei em cima das palavras com minha voz. E por alguns minutos eu sequer me ouvi. Era puro silêncio, e eu continuava lendo. Li de dentro para fora e de fora para dentro. Mergulhei em um êxtase sonoro e flutuei em mim mesma, estava inteira e dispersa em milhões de pedaços, tudo ao mesmo tempo.
Quando percebi que não havia mais nada para ler, pois tinha acabado o texto, voltei ao mundo presente e levantei a cabeça. Todas as minhas colegas e a Professora estavam com os olhos fixos em mim. Baiana sorria. Um sorriso grande, acompanhado por olhos brilhantes que, neste exato momento, me fazem chorar com a lembrança. Ela foi a primeira a quebrar o silêncio, o silêncio coletivo: “Nossa! Que lindo!”
Olhei para a Professora. Com um sorriso, ela disse: “Você leu muito bem. Tanto, que nem interrompi. Foi a melhor leitura de texto que já ouvi. Parabéns.” Morri novamente, incrédula.
Hoje, quando penso nesses dois episódios da minha vida, sou grata. Aprendi com “o professor” que deve-se ter cuidado com o que dizemos aos outros em público. Também ele despertou em mim a curiosidade pela anatomia humana, quando contava suas histórias e me fazia querer saber mais. Aprendi que tudo tem um tempo certo e cada pessoa pode nos ensinar muito, para o bem e para o mal, depende do ponto de vista, da sua evolução e do momento. Infelizmente não me lembro do nome da Professora, mas não esqueço seu sorriso e suas palavras. Aquele “parabéns” que desenterrou minha autoestima.
Tudo é tão complexo e ao mesmo tempo tão simplório. O que interessa realmente é como achamos o caminho na pedra. Não importa o tamanho ou como ela está colocada na estrada. Observe, espere, respire. E nunca, em nenhum momento, subestime nada!

Para os curiosos, a parte do livro Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto, que li em voz alta, para a turma 205, quando eu tinha 20 anos. Na minha opinião, lindíssimo!

 O Retirante, chega à zona da mata, que o faz pensar, outra vez, em interromper a viagem.
— Bem me diziam que a terra
se faz mais branda e macia
quando mais do litoral
a viagem se aproxima.
Agora afinal cheguei
nesta terra que diziam.
Como ela é uma terra doce
para os pés e para a vista.
Os rios que correm aqui
têm a água vitalícia.
Cacimbas por todo lado;
cavando o chão, água mina.
Vejo agora que é verdade
o que pensei ser mentira.
Quem sabe se nesta terra
não plantarei minha sina?
Não tenho medo de terra
(cavei pedra toda a vida),
e para quem lutou a braço
contra a piçarra da Caatinga
será fácil amansar
esta aqui, tão feminina.
Mas não avisto ninguém,
só folhas de cana fina;
somente ali à distância
aquele bueiro de usina;
somente naquela várzea
um banguê velho em ruína.
Por onde andará a gente
que tantas canas cultiva?
Feriando: que nesta terra
tão fácil, tão doce e rica,
não é preciso trabalhar
todas as horas do dia,
os dias todos do mês,
os meses todos da vida.
Decerto a gente daqui
jamais envelhece aos trinta
nem sabe da morte em vida,
vida em morte, severina;
e aquele cemitério ali,
branco na verde colina,
decerto pouco funciona
e poucas covas aninha.

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