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Trabalhamos embarcadas, offshore, dentro d’água, como queiram. As palavras para explicar essa maneira de ganhar a vida, ou ganhar o sagrado dinheiro para viver a vida, tem muitos nomes. Mas, o importante é o que se ganha na convivência. Neste mundo muito diferente, temos o privilégio da intimidade quando descobrimos a beleza no interior dos seres mais incríveis. Verdadeiros presentes em palavras pois é o que podemos aqui compartilhar. Pérolas que não vão adornar o corpo mas com certeza vão fazer crescer o valor da alma de cada uma de nós. Se nem tudo que se mostra é belo, não importa. Se percebermos o equilíbrio, vai ficar tudo bem!

02 novembro, 2021

Lucilia




Eu tive pouco contato com minha avó paterna. 
Sei que era descendente de franceses e italianos. 
Lembro que a vi poucas vezes, umas quatro ou cinco vezes, na minha infância e adolescência. Ela faleceu em 1979, quando eu ainda era uma adolescente cheia de sonhos e fantasias.
O que eu lembro da minha avó é a imagem de uma pessoa velha, ou talvez envelhecida, enrugada. Voz pesada na garganta untada com chimarrão quente e cigarro. Gestos lentos onde ela abanava as mãos grandes cheias de ossos. O corpo grande, ossudo, largo. Os olhos famintos, agudos, brilhantes e observadores. Sempre com aquele quê de desconfiança e ataque.
Mas a minha avó nem sempre foi velha - Hoje, quase mais velha do que ela quando a conheci, consigo entender que aquela imagem era de uma pessoa sofrida, sozinha, machucada - tornou-se dura, amargurada e, como todos diziam, "louca". 
Provavelmente hoje seria diagnosticada como bipolar.
O incrível é que não existia nenhuma célula louca nela. Aliás, acredito que ela tenha incorporado a loucura para mascarar a verdade ou sequer se dar ao trabalho de uma explicação para os outros. Ela aceitou a loucura como uma capa para que seu ser ficasse invisível. Na verdade, a invisibilidade a defendia da verdade e atenuava sua culpa.
Os outros, familiares com seus próprios umbigos satélites, não procuraram entender, nem questionaram os motivos. Por quê uma mulher que ainda não fizera 40 anos, na década de 30, embarcara em uma carroça com 8 filhos e abandora o marido e a fazenda, no interior do Rio Grande do Sul. Apenas a julgaram louca e a sentenciaram a uma vida difícil, onde os filhos foram as grandes vítimas da falta de carinho, suporte e acolhimento da própria família.
Mas eram outros tempos. Tudo era mais difícil de se ganhar. O dinheiro era escasso. As famílias eram grandes e com muitas mulheres. Época onde a profissão para elas era o casamento. O tempo se encarregou de organizar a vida de cada um dos meus tios e tias. Tornaram-se pessoas com suas próprias demandas de família, vícios, dificuldades, leviandades, moral, alegrias e tristezas - como toda grande família que se preza. E minha avó foi se acomodando entre as estações do tempo, mudando de casas, colocando panelas em baixo das goteiras, fechando as janelas no inverno, acendendo o fogão à lenha e fazendo sua sopa. Enquanto seus olhos verdes e vivos vagavam pelo céu, sorvendo o chimarrão, e sonhando com um futuro seguro para seus filhos.
Minha avó era, na verdade, uma guerreira. Uma pioneira! Dona legítima do seu ser, da sua vontade.
Diferente das mulheres de sua época, ela fez uma escolha e recebeu as consequências pelo resto de sua vida. 
A loucura da ignorância alheia afasta e constrói barreiras que impossibilitam o amor avançar e abraçar o outro. E também a falta de entendimento dos outros é que faz com que pensem que somos loucas. 
O julgamento alheio, o rancor e o não entendimento dos filhos. As estações indo e vindo abraçando nossos corpos e nossas almas com flores, frio, calor e ventania.
Cresci e, por opção, escolhi amar essa figura fantástica que faz parte da minha história. Escolhi entender que suas ações ajudaram a me trazer à este mundo. Se não fosse sua cabeça-dura, meu pai não teria trilhado o caminho até minha mãe.
Tudo tem uma razão de ser. Estamos no lugar certo, fazendo o que é certo, na hora certa.
Infelizmente não conseguimos entender isso de forma simples. 
Gritamos, sofremos, guardamos lixo...
Ah, a vida é tão simples! Se simplesmente conseguíssemos respirar mais e segurar os impulsos nefastos que nos invadem quando somos assombrados na nossa zona de conforto.
Muito grata estou por você, vó Luci. Pelo seu movimento incrível em quebrar regras e conceitos, que deixavam as mulheres em suas caixas.
Obrigada por se permitir. Obrigada por me ensinar que podemos fazer diferente.
Fique bem. 
Que o amor de Divino acolha seu coração.
Vocé é linda!


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