Era uma vez um rapazinho
magro, com os olhos cheios de curiosidade, que nasceu no interior do Rio Grande
do Sul, lá pelas bandas de Inhacorá. Desde cedo ele já observava os bugres na fazenda, atolando as vacas no brejo quando seu pai não estava em casa, para poder
comerem a carne. Sua mãe, mulher trabalhadeira e sozinha com oito filhos, não
tinha como resgatar as vacas, então as entregava aos índios. Sua memória prodigiosa
lembra que, quando sua mãe colocou os oito filhos na carroça para sair "dauqele fim de mundo" rumo à Itaqui, foi sentado na parte de trás, balançando os pés e comendo a galinha
com farofa, que ele tirava de dentro de uma lata – escondido, claro! Já nem
tinha sete anos e me contou, com um sorriso no canto da boca, que jogava os
ossos na estrada, para que sua mãe não visse.
Coisa de criança, certamente,
que ele quase não teve tempo de viver. Desde muito cedo fazia contrabando no
rio Uruguai, atravessando com a chalana, remando noite a dentro com sua
companheira de contravenção, Maria. Nessa luta diária e noturna para
sobreviver, vendeu laranjas, picolés, e tudo o que poderia ser transformado em
dinheiro. Corria nas ruas descalço, conhecia todos os “meganhas” (policiais),
dormia em baixo da mesa, apanhava dos mais robustos, mas nunca levou desaforo
para casa.
Quando sua irmã Linar deu a
ele todas suas economias para a compra de um par de sapatos, para que ele
pudesse comprar uma passagem para se alistar na Marinha, sua vida mudou.
O mar, a itinerância, o
desconhecido, a liberdade, deram a ele o reconhecimento da sua alma. Viajou,
trabalhou, foi requisitado e reconhecido; administrou, aprendeu que não se
discute com superiores; acatou ordens estúpidas e foi condecorado; liderou, conspirou e construiu uma personalidade forte e inflexível – um sobrevivente.
Esse rapazinho que poderia
ter morrido várias vezes teve um anjo da guarda também marcado por batalhas. Não
adoecia, não esmorecia, não desistia.
Apaixonou-se em março e
casou-se em dezembro contrariando sua própria natureza. A família deu a ele um
sentido de responsabilidade e fidedignidade que já estava lá, em algum lugar,
esperando para ser resgatado. E assim, foi a vez de desempenhar o papel de pai,
marido e amigo de forma muito boa, porque afinal, não existem regras nem manuais
que definam o que fazer com três crianças. Mas ele tinha o fundamental: força
de vontade!
Não faltaram presentes no
Natal nem as viagens anuais. Livros, música, dança. Humor, animais dentro de
casa e a cobrança de responsabilidade. Nunca faltou comida e conversa. Nunca
faltou correção e sinceridade. Hoje, pensando naquele rapazinho que se transformou em um homem, eu queria um pouco mais de tempo.
Mas o tempo é relativo –
aqui e lá – mas, para aquele rapazinho do interior que teve uma sorte danada de
singrar mares desconhecidos, oitenta e sete anos foi um tempo considerável!
Como ele mesmo me disse, à
mesa, durantes incontáveis refeições: “Eu poderia ter morrido várias vezes”. E eu sorria, e dizia: “Pois
é, Tetéia! Você não morreu porque tinha que estar aqui, neste momento, contando
tudo isso para mim. E também, porque eu precisava nascer!”
É um privilégio ter conhecido
esse rapazinho muito forte – física e espiritualmente – e ainda ser filha dele
e, no fim, ainda ser testemunha do crescimento de sua alma.
E assim,
depois de um ano sem sua presença física neste plano, tenho certeza que sua
história não chegou ao fim, pois ainda podemos viver felizes para sempre com
seu amor pela vida – extraordinário!