Foto: FPES Lorena, Edson, Jaelson, , Elaine
Aqui estou eu, fazendo o HUET pela quinta vez. Explico
que é um curso com siglas em inglês que significa algo parecido como: Treinamento para Escapar de um Helicoptero Embaixo D’água. Coisa pouca. Imagine
que você vai voando para o trabalho (meu caso) e, de repente, o bicho dá uma
pane e cai dentro da água. Você, muito bem treinado, com todo o próprio pânico
controlado, já sabe como escapar, principalmente se o helicóptero virar de cabeça
para baixo.
Isto é apenas um dos cursos básicos que nós, que
trabalhamos embarcados, precisamos fazer para estarmos aptos a trabalhar na
vida no mar.
Ultimamente tenho pensado – ou melhor – observado o
pessoal que embarca apresentar inúmeros problemas físicos e psíquicos.
Conversando com meu colegas eu escuto todo tipo de problema. A principal
reclamação é manter um relacionamento saudável. Com nossas prolongadas
ausências, geralmente de quatorze dias, ficamos longe da vida diária ou da rotina
de nossa família, principalmente filhos e conjuges. No início o deslumbramento
com a pessoa que embarca – todos acham que na “folga” não fazemos nada – parece
o paraíso. Mas depois o longo período de ausência vai levando a uma angústia
por parte, principalmente, de quem fica esperando, que provoca naquele que
embarca, um profundo desespero. Aí começa a gerar a tristeza e,
consequentemente, a depressão. Os telefonemas não param de acontecer,
prejudicando o trabalho a bordo e atrapalhando a concentração. A insatisfação
com o trabalho vem logo depois, fazendo com que nada seja bom. Os defeitos do
ambiente no qual trabalhamos começam a sobrepujar as qualidades. De repente,
não há mais relacionamento e lá vamos nós para nosso terceiro casamento e o
quinto “PJ” – para quem não sabe: Pensão Judicial.
E na fila da terapia se encontram os filhos que já são
meio-irmãos, com dois pais, quatro mães, oito avós e um monte de outros
parentes, deixando todos sem referência e fazendo o inferno em uma sala de
aula.
E também temos a fila das doenças que só cresce.
Surtos, TOCs, ataques de pânico repentinos. Aquela doença de pele que faz os
cabelos caírem junto com as sombrancelhas. Horror! A psoríase que deixa seu
corpo explodindo de ansiedade dizendo para você: seu mundo interior não te quer
mais no mundo exterior!
Trabalhar em um ambiente confinado faz com que senso
de liberdade entre em desespero e isso só vamos perceber mais tarde na
taquicardia inesperada, nas insônias, hipertensão, diarréias, mau humor,
pessimismo e ansiedade.
Numa conversa com um dentista fiquei estarrecida
quando ele me disse que todas as pessoas que trabalham embarcadas, as quais ele
trata, tem bruxismo. Incrível! Imagine uma tripulação de trabalhadores rangendo
os dentes, mastigando-se, lutando com seus monstros enquanto dormem! Que
sinfonia!
Por isso que fazer cursos na nossa folga é tão
irritante. É como se invadissem nossa paz novamente. Nos trouxesse de volta ao
trabalho que apenas queremos “apagar” por uns dias. E o que me levou a escrever
sobre isso foi meu apagão. Falta de memória! Simplesmente esqueci que o curso
de HUET estava marcado, e sem ele eu não posso embarcar.
Me lembrei que vários colegas já comentaram sobre isso.
Esquecimento. E eu que me gabo de não usar agenda. Nunca usei porque gosto de
exercitar minha memória e assim tenho tudo gravado. Horários, locais, pessoas.
Será que além das lesões físico-básicas que adquirimos ainda temos que incluir
a falta de memória no CV de doenças offshore?
Já perdi dez por cento da capacidade auditiva do
ouvido esquerdo e engordei montes de quilos; consegui lesões na coluna e
varizes. Não vou citar aqui os pormenores sórdidos da minha vida amorosa porque
meus amigos já sabem como é... ou não é! Sem contar que o maior índice de
disfunções sexuais se encontram nos homens que embarcam. Usem a imaginação...
Por que será?
Marcar consultas é outra dor de cabeça. Além de
existir uma data velada de agendamentos para o plano de saúde você precisa
ligar “do dia tal ao qual”. Se eu estiver embarcada nesses dias nem adianta
insistir. Aí entra minha mãe e sua gentileza ao telefone. Mas, e para quem não
tem “mãe”? Sabemos que comunicações a bordo são difíceis e temos que contar com
a boa vontade daqueles que retém o poder dos telefones.
Nossa vida social é feita de datas perdidas.
Casamentos, aniversários, carnaval, ano novo, natal. Feriados prolongados onde
você se desencontra de todos! E quando tenta organizar sua rota para ser o
padrinho na formatura do seu melhor amigo, tem que depender da boa vontade do
seu “back”. Mais stress!
E um grande perigo que poucos tem consciência é o círculo
vicioso do dinheiro fácil: a atraente Dobra! Ela te dá muito dinheiro mas leva
sua sanidade. Vender as férias pode ajudar a comprar o carro e terminar a obra
mas cobra seu precioso tempo, o de não estar com aqueles que lhe são caros. Cuidado!
O vicio do dinheiro traz ganância e adoece o espírito. Voltamos daí, à estaca
zero. Como disse um grande sábio: “Para
que eu preciso de três pares de sapatos se só tenho dois pés?” O carro na garagem, a família dentro de casa,
confortavelmente me esperando... E eu embarcado!
Claro que também temos motivos positivos para levar
essa vida trabalhista neste ambiente aquoso. Caso contrário, não estaríamos
aqui, mas, só para constar, para aqueles que acham que nossa vida é maravilhosa;
que trabalhamos só metade do ano; que não fazemos nada na nossa folga e ainda
reclamamos, gostaria que lembrassem que temos família, sentimentos e um corpo
físico que se deteriora como os outros. Sem contar que o desgaste psicológico é
intenso. E ainda temos que ouvir gracinhas como “Pião é a imagem do cão”. Onde
está o respeito pela essência divina que reside em todo ser humano?
Se isso não for suficiente, para estimular a
solidariedade, venham trabalhar aqui e sentir o perigo de perto. Saber que
literalmente estamos todos no mesmo barco e precisamos uns dos outros em cima
desta bomba... Mesmo!
Me lembrei de uma música do Titãs, Comida, que pergunta:
Você tem fome de quê? A maioria diria liberdade ou independência. Independência
é utopia. Liberdade é sonho. Minha fome é de respostas para perguntas que nem sei
se são relevantes ou se farão diferença quando forem respondidas. A fome
verdadeira é de respeito. Respeito pelo trabalho que fazemos e pelo amor que
sentimos.
De longe o mar é lindo e misterioso. De perto ele é
solitário e cruel.
Belíssimo!
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