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Trabalhamos embarcadas, offshore, dentro d’água, como queiram. As palavras para explicar essa maneira de ganhar a vida, ou ganhar o sagrado dinheiro para viver a vida, tem muitos nomes. Mas, o importante é o que se ganha na convivência. Neste mundo muito diferente, temos o privilégio da intimidade quando descobrimos a beleza no interior dos seres mais incríveis. Verdadeiros presentes em palavras pois é o que podemos aqui compartilhar. Pérolas que não vão adornar o corpo mas com certeza vão fazer crescer o valor da alma de cada uma de nós. Se nem tudo que se mostra é belo, não importa. Se percebermos o equilíbrio, vai ficar tudo bem!

09 janeiro, 2015

Diário de Viagem - Buenos Aires - 2012



Depois de uma conversa boa daquelas, em cima da minha cama, eu e Emanuelle resolvemos da um tempo neste mundo e viajar. Para onde? Buenos Aires? Vamos? “Já estive lá e é muito legal. Na época, junto com Miriam, nos divertimos muito. Foi tudo muito incrível e quero te mostrar os lugares que visitei.”
Então vamos! Viagem decidida, marcamos a data, compramos passagens. Trabalho concluído, famílias comunicadas, hotel agendado, malas arrumadas. Dr. Google sabe tudo. Pesquisamos clima, lugares a serem visitados, transporte, câmbio.
Nos lançamos em uma aventura com precedentes, sorrisão no rosto e gargalhadas de plantão na bolsa para serem sacadas sem discriminação de 22 à 29 de outubro.
Buenos Aires é cinzenta. Um estilo antigo onde poderia ser rodado um filme vampiresco com atores desconhecidos, ou não. Tem uma aura, uma bruma escondida que zomba de nós. Parece uma senhora bruxa, com uma capa muito longa que esconde o rosto em um capuz.
Logo que chegamos tentamos trocas nossos reais por pesos e descobrimos que os as filiais dos bancos brasileiros não estavam funcionando. Fomos à casa de câmbio e comecei a cultivar uma decepção com a cidade que já começava a se mostrar estranha para mim.
Enquanto caminhávamos na rua paralela à 9 de Julio vários homens nos cercaram gritando ofertas de almoço, janta, câmbio e compras suspeitas. Melhor pegar um mapa e decidir o quê visitar.
La Recoleta – O cemitério onde Eva Perón é visitada todos os dias por dezenas de pessoas teve um novo sentido. Manu ficou encantada com as inúmeras estátuas de anjos que se espalham em todas as direções. Resultado: fotos de todos os lugares em todos os ângulos! O clima estava bom, o céu cheio de nuvens e a luz do sol parecia estar atrás de uma cortina. Muito sinistro! Ficamos horas fotografando gatos que posavam para nós. Sim! Gatos de verdade. Amarelos, cinza, rajados, velhos, estropiados, brancos, pretos, preguiçosos, desconfiados. Mas nenhum deles parecia esfomeado. Por que será?
E os anjos que nos olhavam com seus olhos cegos nos faziam silenciar e pensar que, afinal, cemitérios também tem beleza. E mistérios! Os leões, as gárgulas, aquelas asas quebradas com flechas apontando para o alto. No limo entranhado nos moldes, tão antigos, tão abandonados, que davam às formas sombras espectrais, iam captando nossa atenção, colocando nossos olhares por trás das lentes das câmeras, enveredando em um universo extraordinário que foge ao nosso entendimento.
Nós duas nos encontramos perdidas entre túmulos de pessoas desconhecidas e encontramos uma parte nossa que estava perdida. E quando nos ajoelhamos dentro da Igreja de Pilar, aos pés da imagem de Jesus, o Cristo, serenamos. Ele é nosso irmão. E uma magia muito louca nos abraçou. E rimos diante da revolta absurda de um mundo tão injusto. E, é claro, fizemos aquela mandinga antiga de fazer três pedidos sempre que se entra em uma igreja pela primeira vez.
Temaiken – Este parque foi um erro que deu certo. Na verdade queríamos ir para Lujan. Resolvemos visitar os leões e os tigres e saímos empolgadas. Pegamos o metrô, falamos nosso portunhol de todo dia e conseguimos comprar as passagens para o parque. Visitamos todos os buraquinhos onde os bichos estavam e tiramos fotos. Muitas fotos! E só na saída descobrimos que Temaiken não tinha leões. Eles estavam a 30 km da cidade!
Depois desta decepção engraçada ainda descobrimos que os turistas são tratados com um diferencial monetário. Tudo é muito mais caro. Uma garrafa de água de 200ml custa 30 pesos, o equivalente a 15 reais. Fiquei com vergonha e pensei, será que no Brasil isso também acontece? Vemos um “gringo” e resolvemos ganhar em um dia o que ganhamos em um mês? Feio. E muito pobre esse comportamento. A corrupção tem raízes profundas na construção psicológica de um povo. E parece que não vamos nos livrar disso tão cedo.
Pelo menos a fotos ficaram lindas! Arigatô, Nikon-san!
Zoológico de Lujan – É uma fazenda-parque onde leões, tigres e gatinhos de grande porte são criados mamando em cadelas e brincando com gatinhos de verdade (???). Assim eles são tecnicamente domesticados e convivem com os bichos homem/mulher sem querer cravar os dentes em suas jugulares.
O lugar fede. Desculpem-me, cheira muito mal. Imaginem uma área aberta onde patos, marrecos, gansos e afins ficam soltos o tempo todo, passeando entre as pessoas, atacando suas bolsas – sim! Eles nos atacam procurando comida! – entre gatos, cães, passarinhos, pombas e... (usem sua imaginação olfativa!).
Mas tudo é esquecido quando se tem a oportunidade de tocar em um animal que, geralmente, só vemos na televisão, a uma distância muito segura. O cuidado ao entrar nas jaulas desses animais é extremo. Embora tivemos a nítida impressão que todos eles estavam dopados, foi muito emocionante poder posar ao lado de um leão de 200 quilos – com as mãos nele!
Manu deitou no chão, com a cabeça na barriga de um tigre, toda feliz. Na verdade eram tres tigres – completamente apagados! Quando eu passei a mão na cabeça de um deles os treinadores gritaram: “Na cabeça, não!” – tarde demais! O animal sequer piscou. Manu bateu a foto, rápida! Como não passar a mãos na cabeça de um bichano? Gente doida!
Na saída, no final da tarde, novo aborrecimento. É preciso ter muito cuidado com as informações que se recebe aqui. Cada um tem um livro de regras diferente e ninguém conhece a alheia. Na vinda pagamos dez pesos cada passagem. Perguntei três vezes ao motorista/cobrador/informante se poderíamos voltar com o mesmo transporte pagando a mesma quantia. Ele disse: “Sí. Sí. Usted tiene que pagar con diez monedas.” Felizes, passamos o dia no zoológico passeando de camelo, passando a mãos nas trombas dos elefantes, driblando os patos (e afins), fotografando lhamas e focas, e colocando filhotes de leões no colo.
E, surpresa! Depois de esperar meia hora pelo ônibus, eis que o motorista não nos deixou entrar porque a passagem não era dez pesos mas TRINTA pesos! Madre de Dios Santo! Discuti com o motorista, nem me lembro o que disse. Só sei que, furiosa, encontrei os olhos da Emanulle, entre espantados e divertidos. Ela me disse: Gente! Eu não sabia que você sabia falar espanhol tão bem!”. Foi minha vez de ficar espantada. Eu? Falando espanhol? Bem? Ri. Quando nos aventuramos em terras desconhecidas é preciso levar na bagagem muita paciência e deixar a caixa de expectativas em casa. Assim não nos decepcionamos e podemos resolver os problemas com mais racionalidade. Porque no auge da raiva podemos fazer coisas inusitadas até falar bem espanhol!
Feira de San Telmo – aqui é outro mundo! Uma espécie de fenda intra temporal onde tudo é nada e nada é tudo. São coisinhas lindas e feias. Para todos os gostos e desgostos. Você encontra o desnecessário e necessariamente se encontra inundada por inutilidades que você precisa ter. Vários universos de possibilidades. Humanas e materiais.
Onde uma estátua humana de um homem todo branco pega na sua mão com tanta gentileza, te olha no fundo dos olhos e beija seus dedos suavemente. Te dá o braço e te permite acompanhá-lo em uma caminhada imaginária, capturada na fotografia fria. E te agradece, tendo você dado a moeda ou não, com um sorriso enigmático que diz: “você jamais vai me esquecer!”
Teatro Colón – que maravilha. A apresentação que assistimos de uma solista tocando o violoncelo foi emocionante. A arquitetura, a história, o som. Como se estivéssemos hipnotizadas, deixamos que as notas tomassem conta da nossa corrente sanguínea e bombeassem nossos corações no ritmo do arco. Definitivamente ali, nos sentimos outras. E, melhor, como se pudéssemos ser quem quiséssemos. Tanto, que enquanto andávamos na calçada do Teatro dois casais passaram, nos olharam e disseram: “Españolas”.
São momentos como esses que colocam em xeque nossos limites. Não há fronteira para nossos sonhos. Não há beirada de precipício que nos impeça a caminhada. Basta saber de que maneira você alçará voo.
Show de Tango – Assistir um casal dançando tango mexe com todas as células do seu corpo. Dá vontade de levantar, ser rodopiada, agarrada, olhada, despida, amada. Depois de um jantar regado à gentilezas concedidas à damas, assistimos os casais executarem aqueles passos intrincados, ensaiados, com tanta naturalidade que tenho a impressão que eles já faziam isso no útero da mãe, enquanto ficavam ali, esperando a hora de nascer, sem nada para fazer.
É um deleite visual e sonoro e queremos que seja repetido em câmera lenta, para ficar gravado no tempo suspenso, infinito. Mas acaba, infelizmente. Mas quando olho as fotos, sou buscada pelo momento passado e posso ver nos olhos do dançarino a malícia sedutora com que olha sua dama, com a mão na sua cintura, inclina seu corpo para trás e deixa pairando no ar o beijo que não acontece, a milímetros da sua boca. E ela, lânguida, suspira e se deixa trazer de volta para mais um giro.
A cidade – andamos muito, compramos lembranças, futucamos lojas, e tentamos fazer um lanche o que se revelou uma grande frustração. Cansadas de tanto andar, com fome e doidas por um banho, resolvemos comer primeiro e depois voltar para o hotel. Entramos na fila no McDonald’s e esperamos. Chegou nossa vez, fizemos o pedido. Na hora de pagar, a confusão! Aquela não era a fila para pagar com cartão de crédito. Discuti com a funcionária porque eu estava vendo a máquina ao lado dela. Ela me mandou para o outro caixa onde a fila dava a volta no quarteirão. Hilário. Quarteirão com queijo foi o meu pedido. Iria ficar sem o queijo pelo jeito. Eu sei que desistimos da compra e rumamos para o Burger King. Quando entramos na loja nos olhamos com a mesma pergunta no olhar: “Por que aqui está vazio?” Continuamos a rir, sim porque na saída do McDonald’s, frustradas e mal humoradas, ainda conseguimos fazer piada com a atendente numa mistura de significados entre “tarjeta”, “careta”, e outras palavrinhas sórdidas, nas duas línguas, que vão acabar em rimas que todas conhecemos.
Fomos bem atendidas. Pagamos com cartão de crédito. Jantamos. Voltamos para o hotel, tomamos banho e nos atiramos na cama para ler – acreditem – Cinquenta tons de Cinza. E continuamos a rir muito com as personagens e seus conflitos sexuais psicológicos. Ah, la vida es mui bela!
Caminhando pela 9 de Julio fui atacada por um típico bandido pé de chinelo que tentou arrancar um cordão do meus pescoço. Ouro falso. Mas o susto foi dele. Agarrei o braço da criatura e não o larguei. Ele arregalou os olhos que estavam exatamente na linha dos meus, e tentou puxar o braço. Segurei firme. Como não luto nada, não tenho reflexos apurados desenvolvidos pelas artes marciais nem meu corpo é condicionado para reagir neste sentido, fui pega de surpresa e fiquei suspensa entre e o choque de ser violada e o não saber o que estava acontecendo. Em fração de segundos entendi. E ele se apavorou. Conseguiu se soltar de saiu correndo, cambaleando. Atropelou um conterrâneo que vinha na direção contrária e caiu no chão. Eu, Manu e mais ou menos umas trinta pessoas na rua ficamos olhando o pobre-diabo-coitado se afastando, frustrado e com medo.
Sua tentativa de assalto à mão desarmada não funcionou comigo. Enquanto ele se afastava eu ainda consegui ouvir pessoas xingando, gritando, pedindo por Deus, perplexas! Eu fiquei parada, olhando-o se afastar, com vontade de ir atrás dele e arrancar aqueles olhinhos pretinhos daquela carinha inexpressiva dele.
Depois ouvimos relatos de brasileiros e outros turistas que passaram pelo mesmo problema. Com a mesma tática. No outro dia, passando pela mesma calçada eu o vi, sentado ao pé de uma estátua, observando as pessoas passarem. Eu olhei para ele e o vi levantar-se e seguir para a entrada do metrô. Me reconheceu.
Em nenhum lugar do mundo passei por uma experiência assim. As marcas da mão esquerda dele ficaram no meu colo, onde ele tentou arrancar o cordão. Eu entendo quando as mulheres são agredidas e correm para tomar um banho. Foi o que eu fiz. A água é o bálsamo que lava aquela energia negativa que invadiu o nosso espaço sagrado e violou o nosso corpo. Queremos apagar as marcas, o toque, o suor, a sujeira que entrou sem ser convidada.
Mas a vida segue seu curso e tudo faz parte de um grande equilíbrio. A beleza pode ser encontrada em qualquer lugar, basta saber olhar. A Casa Rosada, pombos voando em todos os lugares; a Floralis Generica e seus esquilos. Árvores imensas, sozinhas, sombreando uma enorme praça. Estátuas pichadas, abandonadas, representando tantas coisas que ninguém se interessa mais. Prédios antigos, belos gigantes arquitetônicos, espremidos entre o metrô e o vai e vem das pessoas que sequer olham para cima.
Passamos sete dias diferentes, experimentamos humores, lugares, roupas. Compartilhamos dores, risadas e comemos bem. Gastamos dinheiro, compramos qualidade de vida. Despimos alguns conceitos, nos vestimos com felicidade. Achamos a cura para doenças antigas e abandonamos fórmulas ineficazes.

Viajar é sempre descobrir caminhos internos.

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