Eu tinha mais ou menos uns 10 anos de idade quando estudei em uma
escola pública no interior do Rio de Janeiro, Região dos Lagos. Lembro de uma
escola sem atrativos, com um espaço enorme que era usado como campo de futebol
na hora do recreio. Lá todos os alunos se encontravam para colocar as fofocas
em dia, paquerar, sujar a roupa no pó e ainda fingir que ali existia um
gramado. Crianças e adolescentes tem uma maneira muito natural de ignorar o
negativo e aproveitar o que a vida dá. Simples!
As aulas de ciências eram dadas por um “professor” que
na verdade era um médico ortopedista (soube disso bem mais tarde, nem sabia que
existia esse nome!). Ele trabalhava no hospital público da cidade, morava
noutra cidade e fazia um “bico” na escola. Homem grande, voz poderosa, muito
agitado. Ficava indo e vindo pela sala, passeando entre as carteiras, olhando
para todos com olhos de águia. Não perdia nada, não nos deixava falar. E mesmo
assim, ficávamos com a atenção totalmente voltada para ele. Medo? Curiosidade? Vai
saber! Ele gostava de dizer muitos "eus" e se gabava de ser muito bom em tudo que fazia! Naquele dia, resolveu fazer uma “leitura
coletiva” e foi aí que eu percebi que ele iria me VER, ali, no fundo da sala,
onde eu pensei que estivesse invisível!
Sim, invisível! Sendo a mais nova da turma eu não
tinha colegas-amiguinhos que sabiam dos meus segredos (ainda estou procurando
algum), compartilhavam meu material e dividiam o lanche. Não! Totalmente isolada
e tímida eu comecei a entrar em contato com meu mundo solitário muito cedo. Já fazia
coleção de gibis, lia o que aparecia na minha frente, observava tudo, escutava
e analisava ainda mais.
Quando o professor gigante explicou como seria o
exercício entrei em pânico. Minha respiração desapareceu! Oxigênio limitado e
adrenalina em quantidade. Tô perdida! Enquanto ele regia a leitura sobre algo
que não tenho mais a mínima ideia do que era, passando de um para o outro,
conforme os parágrafos eram eliminados, eu contava todos, desesperada, rezando
para que não sobrasse nenhum quando chegasse a minha vez.
Vã esperança – ele simplesmente pulou para a minha
fila e disse: “Você aí, na última cadeira!” – eu fiz de conta que não era
comigo, não tirei os olhos do livro. Alguém, para me ajudar (estou tentando
lembrar o nome da criatura para fazer um feitiço, ainda!), disse: “Elaine,
professor!”. Levantei a cabeça e olhei em volta. Sabe aquela sensação que você
tem quando o mundo para e você vira o centro, como se uma catástrofe fosse
acontecer e você está ali, totalmente impotente, à mercê do tudo? Pois então –
os vinte ou mais colegas, todos olhando para mim, inclusive “o professor”, com
um sorrisinho sarcástico, na boca. Eu fiquei olhando, sem respirar. Esperando. “Elaine,
pode ler o próximo parágrafo!”
Foi um dos momentos em que eu morri. Sim, porque se
você for pensar na sua vida pregressa, vai ver que já morreu várias vezes. Olhei
para o livro, encontrei o parágrafo e fiz um esforço enorme para respirar. Ouvi
novamente “o professor”: “Vamos, pode começar!”
Eu comecei a ler, provavelmente sem voz, sem ar, sem
nem estar ali. Meu espírito poderia ter sido abduzido para outro mundo e eu nem
teria percebido, aliás, era exatamente o que eu gostaria que tivesse
acontecido. Que nada! Antes que eu tivesse terminado de ler o bendito
parágrafo, “o professor” disse: “Chega!” – Levei um susto. Levantei os olhos e
fixei meus olhos no umbigo dele. Não iria conseguir olhar para seu rosto,
provavelmente porque já tinha imaginado um monstro com olhos vermelhos, cabelos
espetados e uma boca cheia de dentes saltando para fora. É, minha imaginação
era muito, muitíssimo criativa! Ele continuou: “Você lê muito mal. Nunca vi
ninguém ler tão mal assim!”. Depois ele falou mais algumas coisas que eu já não
ouvia mais. Os olhos continuavam em cima de mim, julgando, debochando, com
pena. Me encolhi. Me recolhi ainda mais. Estava ausente daquele mundo. Morri.
A partir daquele dia continuei lendo meus gibis com
uma pequena diferença. Me trancava no quarto, no banheiro, no fundo do quintal
e lia em voz alta. Lia muito. Lia até ficar rouca. E ria... ria demais! Comecei
a perceber que a minha voz fazia tons diferentes, sons distintos, oitavas altas
e baixas e, para cada personagem, uma personalidade acústica distinta. Ah, meu
mundo estava mais rico! Comecei a falar sozinha e fiquei mais interessante,
pelo menos, para mim mesma.
O tempo passou, a timidez deu lugar a outras coisas
(não vou falar disso aqui agora!), viajei, mudei, morri mais algumas vezes, até
que um dia fui parar na Escola Normal de Brasília, em uma turma com 52 meninas.
Que fauna!
Logo na segunda semana, nossa Professora de Técnicas
de Literatura (me corrijam, meninas, se errei o nome da matéria) nos fez ler,
dividindo o texto aleatoriamente entre nós, João Cabral de Melo Neto, Morte e
Vida Severina. Eu acompanhava o texto, apaixonada pelas rimas, mergulhada em
cada palavra. Percebi a preocupação da minha colega-amiga Baiana (tinha
conseguido uma!), pois ela sabia da minha história. E quando a Professora falou
meu nome, para que eu desse continuidade à leitura, senti o olhar da minha
amiga no topo da minha cabeça (ela estava sentada à minha frente). E foi ali,
no meio da Morte e Vida Severina que eu-menina Morri e Vivi mais uma vez. Eu
li, encontrei o oxigênio que eu precisava nas letras, no
sentimento, na maestria daquele autor. E continuei lendo... percorri todas as
linhas, andei por todas as rimas, caminhei em cima das palavras com minha voz. E
por alguns minutos eu sequer me ouvi. Era puro silêncio, e eu continuava lendo.
Li de dentro para fora e de fora para dentro. Mergulhei em um êxtase sonoro e
flutuei em mim mesma, estava inteira e dispersa em milhões de pedaços, tudo ao mesmo tempo.
Quando percebi que não havia mais nada para ler, pois
tinha acabado o texto, voltei ao mundo presente e levantei a cabeça. Todas as
minhas colegas e a Professora estavam com os olhos fixos em mim. Baiana sorria.
Um sorriso grande, acompanhado por olhos brilhantes que, neste exato momento,
me fazem chorar com a lembrança. Ela foi a primeira a quebrar o silêncio, o silêncio
coletivo: “Nossa! Que lindo!”
Olhei para a Professora. Com um sorriso, ela disse: “Você
leu muito bem. Tanto, que nem interrompi. Foi a melhor leitura de texto que já
ouvi. Parabéns.” Morri novamente, incrédula.
Hoje, quando penso nesses dois episódios da minha vida,
sou grata. Aprendi com “o professor” que deve-se ter cuidado com o que dizemos
aos outros em público. Também ele despertou em mim a curiosidade pela anatomia
humana, quando contava suas histórias e me fazia querer saber mais. Aprendi que
tudo tem um tempo certo e cada pessoa pode nos ensinar muito, para o bem e para
o mal, depende do ponto de vista, da sua evolução e do momento. Infelizmente
não me lembro do nome da Professora, mas não esqueço seu sorriso e suas
palavras. Aquele “parabéns” que desenterrou minha autoestima.
Tudo é tão complexo e ao mesmo tempo tão simplório. O que
interessa realmente é como achamos o caminho na pedra. Não importa o tamanho ou
como ela está colocada na estrada. Observe, espere, respire. E nunca, em nenhum
momento, subestime nada!
Para os curiosos, a parte do livro Morte e Vida
Severina de João Cabral de Melo Neto, que li em voz alta, para a turma 205,
quando eu tinha 20 anos. Na minha opinião, lindíssimo!
O Retirante, chega à zona da mata, que o faz pensar, outra vez, em interromper a viagem.
— Bem
me diziam que a terrase faz mais branda e macia
quando mais do litoral
a viagem se aproxima.
Agora afinal cheguei
nesta terra que diziam.
Como ela é uma terra doce
para os pés e para a vista.
Os rios que correm aqui
têm a água vitalícia.
Cacimbas por todo lado;
cavando o chão, água mina.
Vejo agora que é verdade
o que pensei ser mentira.
Quem sabe se nesta terra
não plantarei minha sina?
Não tenho medo de terra
(cavei pedra toda a vida),
e para quem lutou a braço
contra a piçarra da Caatinga
será fácil amansar
esta aqui, tão feminina.
Mas não avisto ninguém,
só folhas de cana fina;
somente ali à distância
aquele bueiro de usina;
somente naquela várzea
um banguê velho em ruína.
Por onde andará a gente
que tantas canas cultiva?
Feriando: que nesta terra
tão fácil, tão doce e rica,
não é preciso trabalhar
todas as horas do dia,
os dias todos do mês,
os meses todos da vida.
Decerto a gente daqui
jamais envelhece aos trinta
nem sabe da morte em vida,
vida em morte, severina;
e aquele cemitério ali,
branco na verde colina,
decerto pouco funciona
e poucas covas aninha.