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Trabalhamos embarcadas, offshore, dentro d’água, como queiram. As palavras para explicar essa maneira de ganhar a vida, ou ganhar o sagrado dinheiro para viver a vida, tem muitos nomes. Mas, o importante é o que se ganha na convivência. Neste mundo muito diferente, temos o privilégio da intimidade quando descobrimos a beleza no interior dos seres mais incríveis. Verdadeiros presentes em palavras pois é o que podemos aqui compartilhar. Pérolas que não vão adornar o corpo mas com certeza vão fazer crescer o valor da alma de cada uma de nós. Se nem tudo que se mostra é belo, não importa. Se percebermos o equilíbrio, vai ficar tudo bem!

07 junho, 2013

Mar de Rosas

Foto: FPES Lorena, Edson, Jaelson, , Elaine


Aqui estou eu, fazendo o HUET pela quinta vez. Explico que é um curso com siglas em inglês que significa algo parecido como: Treinamento para Escapar de um Helicoptero Embaixo D’água. Coisa pouca. Imagine que você vai voando para o trabalho (meu caso) e, de repente, o bicho dá uma pane e cai dentro da água. Você, muito bem treinado, com todo o próprio pânico controlado, já sabe como escapar, principalmente se o helicóptero virar de cabeça para baixo.
Isto é apenas um dos cursos básicos que nós, que trabalhamos embarcados, precisamos fazer para estarmos aptos a trabalhar na vida no mar.
Ultimamente tenho pensado – ou melhor – observado o pessoal que embarca apresentar inúmeros problemas físicos e psíquicos. Conversando com meu colegas eu escuto todo tipo de problema. A principal reclamação é manter um relacionamento saudável. Com nossas prolongadas ausências, geralmente de quatorze dias, ficamos longe da vida diária ou da rotina de nossa família, principalmente filhos e conjuges. No início o deslumbramento com a pessoa que embarca – todos acham que na “folga” não fazemos nada – parece o paraíso. Mas depois o longo período de ausência vai levando a uma angústia por parte, principalmente, de quem fica esperando, que provoca naquele que embarca, um profundo desespero. Aí começa a gerar a tristeza e, consequentemente, a depressão. Os telefonemas não param de acontecer, prejudicando o trabalho a bordo e atrapalhando a concentração. A insatisfação com o trabalho vem logo depois, fazendo com que nada seja bom. Os defeitos do ambiente no qual trabalhamos começam a sobrepujar as qualidades. De repente, não há mais relacionamento e lá vamos nós para nosso terceiro casamento e o quinto “PJ” – para quem não sabe: Pensão Judicial.
E na fila da terapia se encontram os filhos que já são meio-irmãos, com dois pais, quatro mães, oito avós e um monte de outros parentes, deixando todos sem referência e fazendo o inferno em uma sala de aula.
E também temos a fila das doenças que só cresce. Surtos, TOCs, ataques de pânico repentinos. Aquela doença de pele que faz os cabelos caírem junto com as sombrancelhas. Horror! A psoríase que deixa seu corpo explodindo de ansiedade dizendo para você: seu mundo interior não te quer mais no mundo exterior!
Trabalhar em um ambiente confinado faz com que senso de liberdade entre em desespero e isso só vamos perceber mais tarde na taquicardia inesperada, nas insônias, hipertensão, diarréias, mau humor, pessimismo e ansiedade.
Numa conversa com um dentista fiquei estarrecida quando ele me disse que todas as pessoas que trabalham embarcadas, as quais ele trata, tem bruxismo. Incrível! Imagine uma tripulação de trabalhadores rangendo os dentes, mastigando-se, lutando com seus monstros enquanto dormem! Que sinfonia!
Por isso que fazer cursos na nossa folga é tão irritante. É como se invadissem nossa paz novamente. Nos trouxesse de volta ao trabalho que apenas queremos “apagar” por uns dias. E o que me levou a escrever sobre isso foi meu apagão. Falta de memória! Simplesmente esqueci que o curso de HUET estava marcado, e sem ele eu não posso embarcar.
Me lembrei que vários colegas já comentaram sobre isso. Esquecimento. E eu que me gabo de não usar agenda. Nunca usei porque gosto de exercitar minha memória e assim tenho tudo gravado. Horários, locais, pessoas. Será que além das lesões físico-básicas que adquirimos ainda temos que incluir a falta de memória no CV de doenças offshore?
Já perdi dez por cento da capacidade auditiva do ouvido esquerdo e engordei montes de quilos; consegui lesões na coluna e varizes. Não vou citar aqui os pormenores sórdidos da minha vida amorosa porque meus amigos já sabem como é... ou não é! Sem contar que o maior índice de disfunções sexuais se encontram nos homens que embarcam. Usem a imaginação... Por que será?
Marcar consultas é outra dor de cabeça. Além de existir uma data velada de agendamentos para o plano de saúde você precisa ligar “do dia tal ao qual”. Se eu estiver embarcada nesses dias nem adianta insistir. Aí entra minha mãe e sua gentileza ao telefone. Mas, e para quem não tem “mãe”? Sabemos que comunicações a bordo são difíceis e temos que contar com a boa vontade daqueles que retém o poder dos telefones.
Nossa vida social é feita de datas perdidas. Casamentos, aniversários, carnaval, ano novo, natal. Feriados prolongados onde você se desencontra de todos! E quando tenta organizar sua rota para ser o padrinho na formatura do seu melhor amigo, tem que depender da boa vontade do seu “back”. Mais stress!
E um grande perigo que poucos tem consciência é o círculo vicioso do dinheiro fácil: a atraente Dobra! Ela te dá muito dinheiro mas leva sua sanidade. Vender as férias pode ajudar a comprar o carro e terminar a obra mas cobra seu precioso tempo, o de não estar com aqueles que lhe são caros. Cuidado! O vicio do dinheiro traz ganância e adoece o espírito. Voltamos daí, à estaca zero. Como disse um grande sábio:  “Para que eu preciso de três pares de sapatos se só tenho dois pés?”  O carro na garagem, a família dentro de casa, confortavelmente me esperando... E eu embarcado!
Claro que também temos motivos positivos para levar essa vida trabalhista neste ambiente aquoso. Caso contrário, não estaríamos aqui, mas, só para constar, para aqueles que acham que nossa vida é maravilhosa; que trabalhamos só metade do ano; que não fazemos nada na nossa folga e ainda reclamamos, gostaria que lembrassem que temos família, sentimentos e um corpo físico que se deteriora como os outros. Sem contar que o desgaste psicológico é intenso. E ainda temos que ouvir gracinhas como “Pião é a imagem do cão”. Onde está o respeito pela essência divina que reside em todo ser humano?
Se isso não for suficiente, para estimular a solidariedade, venham trabalhar aqui e sentir o perigo de perto. Saber que literalmente estamos todos no mesmo barco e precisamos uns dos outros em cima desta bomba... Mesmo!
Me lembrei de uma música do Titãs, Comida, que pergunta: Você tem fome de quê? A maioria diria liberdade ou independência. Independência é utopia. Liberdade é sonho. Minha fome é de respostas para perguntas que nem sei se são relevantes ou se farão diferença quando forem respondidas. A fome verdadeira é de respeito. Respeito pelo trabalho que fazemos e pelo amor que sentimos.
De longe o mar é lindo e misterioso. De perto ele é solitário e cruel.

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